por JARBAS SIMILEVINSK
Itaquatirim da Goiabeira era uma cidade de porte médio, situada, a partir de Brasília, numa das direções da Rosa dos Ventos. Por uma combinação de circunstâncias, algumas permanentes e outras eventuais, a cidade acumulava muita riqueza e poder.
Quatirim, como é carinhosamente apelidada pelos seus habitantes, era dominada por um grupo político heterogêneo, formado por antigas famílias fazendeiras, imigrantes e seus descendentes, profissionais liberais, funcionários públicos, comerciantes, empreiteiras, além de charmosos integrantes do submundo da contravenção e, eventualmente, do crime. Um balaio de gatos, mas com todos se considerando ou nobres ou superiores em face dos cidadãos comuns, de extração popular, que os sustentavam e ao mesmo tempo os atemorizavam.
Naquela cidade onde o deus hegemônico atendia pelo nome de Dinheiro, embora, estranhamente, vivia-se citando um Filho de Deus que nunca tivera o menor apreço por essa invenção humana, o Balaio de Gatos costumava se acomodar pragmaticamente, de modo a poder navegar com segurança, embora sem garbo, sobre as cabeças do populacho.
O Balaio tinha um Calcanhar de Aquiles: precisava, de quatro em quatro anos, dos votos do povão, exigência do regime democrático, que permitia uma exploração mais eficiente do que um regime autoritário, sempre malvisto mundo afora. E o povão, embora tolerasse a pretensa superioridade dos privilegiados, precisava de um “tapinha nas costas” de vez em quando, para não degringolar na depressão e no desespero. É aí que entravam os chamados “comunicadores”, artistas que viviam de fazer representações de conceitos estereotipados como “bom moço”, “mocinho”, “meigo”, “justo”, “honesto”, “amigo do rei”, “bonito”, “carismático”, “vai lá e resolve”, “corajoso”, “administrador”, “tocador de obras”, “rouba mas faz”, “algoz da Corrupção”, “desbocado”, “caçador de Marajás”, etc., nas mais variadas combinações.
Pois bem. O comunicador geralmente tem uma técnica muito pessoal, aprendida em décadas de malandragem no meio familiar e vizinhanças. Não é, evidentemente, um líder, pois este sempre atua junto a um grupo homogêneo, atendendo às suas indicações. É um ser egoísta, tipo “sozinho contra o mundo”, embora disfarçado de “amigo de todo o mundo”.
Em 1996 ocorreram eleições em Itaquatirim da Goiabeira. O Balaio estava em luta intestina, com dois grupelhos querendo cada um abiscoitar percentagem maior da riqueza gerada pela Natureza, pela Tecnologia e pelos homens do povo. O grupelho maior conseguiu ganhar a duras penas, e por reduzida maioria de votos, apresentando um candidato majoritário, Pancrácio, do tipo “bom moço”, “justo”, “amigo do rei”, e “vai lá e resolve”. O adversário principal tinha um perfil parecido, mas era um pouco menos incisivo, pois não era “amigo do rei”.
Ao tomar posse, o novo prefeito logo percebeu que o anterior continuava governando, quer pelas leis, decretos e contratos de fim de mandato, quer pelas relações carnais com a maioria dos funcionários municipais, principalmente os secretários. Indignado, Pancrácio chegou a emitir decreto suspendendo por alguns meses a vigência de um bom número de contratos. Mas logo se acomodou e, com os bons ventos que vinham do Planalto Central, começou a recompor com os dissidentes, em vista do perigo maior que seria o crescimento do grupo que pretendia (pelo menos no discurso) mudar o status quo municipal. E começou a conquistar corações e mentes populares, através de associações de moradores, comissões disto e daquilo, ONGs e pequenas empreiteiras brotadas na periferia. Dentro do grupo, distribuía homenagens e presentes, que iam da denominação de logradouros públicos à concessão de usufruto de áreas públicas. Era “generoso” com os bens públicos, mas exigia fidelidade canina dos beneficiados. Tornara-se desbocado e truculento com os adversários, e por isso assumira a liderança inconteste do Balaio.
Nas eleições seguintes, onde pleiteava a recondução ao cargo de prefeito, fez-se um uso inteligente do orçamento oficial, secundado pelos já expressivos valores do tradicional Caixa 2. A oposição, que conquistara em 98 o governo da província, ainda não se situara adequadamente no terreno dos desvios de verbas públicas, e por isso ofereceu pouca resistência. Vitória inconteste de Pancrácio, por larga margem de votos. Nos quatro anos seguintes a técnica dos presentes e cooptações, homenagens e parcerias populares se aprimorou, e o prefeito gozava, ao final do mandato, de grande popularidade.
Nas eleições de 2004 Pancrácio não mais poderia se candidatar. No Balaio havia muitos pretendentes à candidatura, mas surgira uma situação imprevista: do nada, ou mais precisamente de um programa de televisão de míseros 12 minutos, surgira uma figura estranha, meio andrógina, que, sendo médico, falava dos problemas de saúde (fora de sua ingrata especialidade) que afligiam a população periférica (principalmente as mulheres). Com o seu “evidente amor aos pobres” e uma voz de contralto, conquistara o coração feminino. Esse personagem, que se chamava Jucamel, apresentava, já no início de 2004, altos índices de intenções de voto e, sendo de outro partido que não o de Pancrácio, punha em risco o plano continuísta do Balaio. Foi aí que se juntaram fome e vontade de comer: Jucamel abandonou o partido anterior e ofereceu noivado ao de Pancrácio. Este relutou muito, mas acabou vencido por ampla maioria do Balaio, que não queria correr riscos eleitorais. Mas Pancrácio chamou o novo artista para uma conversa e impôs condição: Jucamel receberia, dos valores de Caixa 2 gerados pela futura administração, exatos 20%, e nem 1 centavo a mais, para gastar conforme lhe aprouvesse.
Jucamel teve uma fácil vitória em primeiro turno, apesar do moderado derrame de dinheiro executado pela oposição, agora mais escolada em desvios de verbas e construção de Caixa 2. Mas o novo prefeito trazia consigo, não meia dúzia de correligionários interioranos, como o anterior, mas todo um grande grupo, louco por ascendência econômica e social. Porém Jucamel obedeceu fielmente ao contratado durante os primeiros 2 anos de seu mandato.
Entretanto, chegado o ano pré-eleitoral, viu que precisava de mais dinheiro para construir um grupo hegemônico de apoio parlamentar. Em outras palavras, precisava, em vista de seus ambiciosos planos para o futuro, contar com uma grande bancada própria na Câmara Municipal e na Assembleia Legislativa. Propôs a Pancrácio aumentar, em valores absolutos, as quotas de cada grupo do Balaio, compensando uma “pequena” alteração (de 80-20 para 60-40) nos valores percentuais. “Todos saem ganhando”, sibilava o esperto negociador; “e agora, que a oposição está sem cargo majoritário provincial, e portanto sem dinheiro, vamos avançar sobre o eleitorado deles!”
Por essa fórmula, que decorreria de elevar os sobrepreços dos contratos a mais altos patamares, efetivamente todos no Balaio sairiam ganhando, mas o grupo Jucamel ganharia muito mais, aumentando a sua fatia do bolo. Pancrácio recusou peremptoriamente. Mesmo assim, os patamares subiram durante o ano, como uma isca para os indecisos. Ao final do exercício o melífluo prefeito tentou um novo acordo, com um prévio e generosíssimo aumento do já elevado patamar de sobrepreços, contratos que eram verdadeiros presentes de Papai Noel para empresas “parceiras”. Mas como Pancrácio tapou os ouvidos ao canto de Sereia, chegou a hora de Jucamel “chutar o pau da barraca” (porém sem tombá-lo): chamou de volta os contratados e anunciou uma drástica derrubada (30%!) de todos os valores, impondo-lhes novas assinaturas.
Todos no Balaio estavam felizes com suas retiradas do Butim, menos o grupo Jucamel, que também deveria estar, mas queria mais. No ano eleitoral, o jeito foi arranjar dinheiro de outras fontes, todas mais ou menos perigosas. E Jucamel teve uma reeleição consagradora, conseguindo uma bancada de apoio um pouco maior da que decorreria do seu percentual de 20%. Contudo, não estava feliz, e estranhamente começou a falar de uma crise, prevista pela numerologia maia, que ninguém mais conseguia vislumbrar. Na verdade, era a crise da visita dos agiotas, com suas sinistras e inadiáveis faturas. Que fazer? Novas contratações, claro, mas desta vez tão loucas a ponto do contratador merecer pedras, se por acaso o distinto público desconfiasse de seu teor. Descartados os 40 por cento, os 20 por cento pelo menos permitiriam rolar a dívida. E a dívida rolou, mas prometia crescer como bola de neve na ribanceira.