Manoel de Barros, o Delirante Racional

Manoel de Barros inicia sua carreira poética com os livros “Poemas Concebidos Sem Pecado” (de 1937) e “Face Imóvel” (1942). Nessas obras se apresenta como um poeta confessional, contando, no estilo modernista, episódios isolados aparentemente pinçados de sua infância, adolescência e juventude. São obras de repercussão insignificante nas épocas de lançamento e que mesmo agora são pouco citadas pelos estudiosos.

Em 1947 (segundo cronologia de sua “Poesia Completa”, livro lançado neste ano pela Leya) termina suas “Poesias”, obra que só seria divulgada em 1956. Nesse volume Manoel de Barros incorpora elementos surrealistas, com ele aprofundando e ao mesmo tempo mascarando episódios de uma presumível vida pessoal. É da análise desse livro, com ferramentas freudianas, que Edson Soares Martins, em artigo publicado em 2002 (revista Letras, Curitiba, edição 58), desvenda a “dicção infantilizada” (pretensamente presente nos livros posteriores) do poeta cuiabano como indicativo de regressão psicológica a uma fase anterior de sua vida. Assim, o eu-lírico teria voltado ao cenário pobre mas feliz (ou menos infeliz; não se sabe) de sua infância, para reviver aqueles tempos e expressá-los em versos e poemas. Martins (e muitos outros analistas) acreditam que isto de fato ocorreu, com MB utilizando uma linguagem de ingenuidade, inocência e (contraditoriamente) sabedoria, compatível com aquela época e aquela fase de sua vida. Vejamos se é isto mesmo o que ocorre.

Obra: Compêndio Para Uso dos Pássaros (1960)

Nesse livro Manoel de Barros usa como tema uma Natureza simplificada, conceitual (água, chão, árvores, ventos, aves, caracóis, sapos). Na primeira parte do trabalho introduz visões infantis e, ocasionalmente, visões adultas. Na segunda parte privilegia as visões adultas (incrustando aqui e ali visões infantis), tocando em muitos temas, mas sem desenvolvê-los.

Na verdade o livro todo parece um caderno escolar onde foram-se anotando lembranças e ideias, depois agrupadas pouco criteriosamente para formarem estrofes e pretensos poemas. O resultado é uma algaravia que deixa o leitor muito longe de um clima poético ou mesmo cognoscível. Há, é certo, algumas ilhas de coerência, representadas pelo excerto do lambarizinho que priscava, pelas estrofes dos passarinhos que fediam, pelo soneto “Um Bem-te-vi” e pelos versos (menos o último) de “Coisas Mansas”. Mas isto daria apenas um livro dedicado a crianças (já que os temas e o estilo desses trabalhos isolados são compatíveis com esse público), e mesmo assim desde que completado com belos desenhos coloridos. Ah, e descobri um excerto que vira hai-kai:

Barulhinho vermelho de cajus

e o riacho passando

nos fundos do quintal …

Falta esclarecer em que consistiram essas lembranças e ideias esparsas anotadas pelo poeta. São, as mais das vezes, experimentações poéticas de sabor surrealista. O adulto MB reformula frases aplicando-lhes uma série de experimentos ( os meus acréscimos e esclarecimentos estão entre colchetes ):

a) Elipses:

O menino caiu dentro do rio, tibum,

ficou todo molhado [, com cheiro ] de peixe …

Você brincou [ a respeito ] de mim [, dizendo ] que uma borboleta

no meu dedo tinha sol ?

b) Acréscimos:

Minha boca estava seca

igual DO QUE uma pedra em cima do rio

E o passarinho com uma porcariinha

no bico SE cantou

c) Inversão entre Sujeito e Objeto:

Vi um rio indo embora de andorinhas …

O córrego ficava à beira de um menino …

d) Falsa Percepção:

Uma cerca veio perseguindo meu trem (…)

e) Elipses dos diversos Sujeitos das Ações; aglutinação das resultantes Frases Quebradas:

(essa noite andou bebeu água no rio

caminhou debaixo de paus aproveitou

fez muitos urubus panhou sombras com mato

sujou em cima de uma casa

subiu no tronco do céu

e agora está derramando frutos

nos lábios do cheiroso molhado…)

De meu rosto viam ribeiros …

Menso, muito no começo dele, estancou e sem entender nada.

f) Atribuição de Falsa Propriedade:

estava escorrendo [ raios ] de sol pelas pernas …

madrugada rasteira [ capaz ] de viçar meninos

corgos gastos por passarinhos

Aquela madrugada vinham cheiros em minha boca.

uma boca começou a granar para ele

g) Troca de verbos, pronomes, etc:

Eu ficava (…) lá no alto vendo para o mar [“ver” por “olhar”]

Eram meninos ramificados nos rios que lhe brincavam… [ Eram meninos acostumados a brincar nos rios… ]

A água do lábio relvou entre pedras… [ “relvar” por “resvalar” ]

Fui buscar um gosto leve naquilo árvore, naquilo casa-de-pássaros [“naquilo” por “naquela”]

.

Obra : Gramática Expositiva do Chão ( 1966 ):

Se no livro anterior Manoel de Barros fazia experimentos poéticos, neste elegeu um desses experimentos como forma quase exclusiva de se expressar. Ou de expressar o seu — agora claro — niilismo mecanicista. Trata-se do procedimento de atribuir a um objeto ou personagem qualidades e ações que com ele não são compatíveis (surrealismo). Coisa que a incessante repetição torna cansativa e nauseante. As pérolas deste quinto livro de MB são os chapéus de salto alto e a máquina que menstrua nos pardais. Uma sinopse do conteúdo do livro é, acredito, desnecessária; mas é evidente que não sobrou lugar para nenhuma infantilização (ou “criançamento”) das palavras. Ademais, futuros personagens da obra se reuniram antes de seu lançamento e preveniram o poeta:

A ESTRELA:

— Muitos anos o poeta se empassarou de escuros

O PÁSSARO:

— o limo apodreceu a voz do poeta

A RÃ:

— Sua voz parece vir de um poço escuro

O HOMEM DE LATA:

[ só mesmo ] um corte na boca para escorrer todo o silêncio dele

O HOMEM DE LATA:

[ o poeta ] é um passarinho de viseira : não gorjeia

Pois é, avisaram mas o autor nem ligou. Acharam que era orgulho, arrogância do cuiabano.

Mas parece que era surdez. Surdez de quem se manteve o tempo todo de boca fechada.

_____

P.S.1 – As palavras em azul e marrom foram extraídas do livro citado.

P.S.2 – Na cosmologia barriana todos ouvem com a boca, e não com os ouvidos.

..

Obra : Matéria de Poesia ( 1970 )

Aqui Manoel de Barros começa fazendo metapoesia, ou seja, acrescenta a palavra “poesia” ao seu confortável universo de abstrações. Mas logo reinicia as elucubrações costumeiras, vertendo barrianidades e escatologias do tipo

Passavam brilhantina nos bezerros.

E Transportavam lábios de caminhão …

Ou

A cidade mancava de uma rua até certo ponto;

depois os cupins a comiam

Às vezes o poeta se descuida e deixa escapar coisas simples mas com algum encanto :

De tarde Desenterraram de dentro do capinzal

Um braço de rio.

Já estava com cheiro

Madrugada esse João

Botou o rio no bolso e saiu correndo …

Pega! Pega!

Rios e mariposas

Emprenhados de sol

Eis um dia de pássaro ganho

Tentei achar mais poesia, mas aí o livro acabou …

..

Obra: Arranjos Para Assobio ( 1980 )

Nesse livro o poeta continua com sua meta-poesia e seu surrealismo niilista. Mas agora encompridando um pouco as frases e as estrofes, como se ensaiasse passar da Poesia à Prosa. No exemplo abaixo o autor fala de um besouro náfego:

Com o seu casaco preto chamuscado nas pontas, ele em seguida nafegou no rumo do jardim e entrou no porão de um coreto por onde se comeu como um papel sem gosto

Por outro lado, Manoel de Barros ensaia um reposicionamento das frases nas estrofes, quebrando a tradicional correspondência “um verso, uma frase”:

coisinhas: osso de borboleta pedras

com que as lavadeiras usam o rio

pessoa adaptada à fome e o mar

encostado em seus andrajos como um tordo!

o hino da borra escova

sem motor ACEITA-SE ENTULHO PARA O POEMA

ferrugem de sol nas crianças raízes

de escória na boca do poeta beira de rio

que é uma coisa muito passarinhal! ruas

entortadas de vagalumes (…)

Versos que antes da “originalidade” se escreveriam (com pequena perda de desentendimento) assim:

coisinhas: osso de borboleta

pedras com que as lavadeiras usam o rio

pessoa adaptada à fome

e o mar encostado em seus andrajos como um tordo!

o hino da borra

escova sem motor

ACEITA-SE ENTULHO PARA O POEMA

ferrugem de sol nas crianças

raízes de escória na boca do poeta

beira de rio que é uma coisa muito passarinhal!

ruas entortadas de vagalumes (…)

O poeta também inova com uma auto-entrevista, onde tenta se desexplicar e à sua poesia. E reincide no eterno brinquedo de definir objetos e coisas do seu universo poético, como no exemplo abaixo:

Cisco, s.m. Pessoa esbarrada em raiz de parede

Qualquer indivíduo adequado a lata

Quem ouve zoadas de brenha. Chamou-se de

O CISCO DE DEUS a São Francisco de Assis

Diz-se também de homem numa sarjeta

Não conseguimos, nas 26 páginas da obra, pescar nenhum hai-kai desprevenido ou alguma desavisada sequência poética palatável.

..

Obra: Livro de Pré-Coisas ( 1985 )

No meio de tanta experimentação poética repetitiva, uma boa surpresa. Das 40 páginas desse livro, apenas 5 se identificam como exercícios de Poesia, e delas não falarei. Falarei da prosa, denominada “Roteiro para uma Excursão Poética pelo Pantanal”. Nessa obra Manoel de Barros começa como quem não quer nada, com a parte “Ponto de Partida”, que fala rasamente sobre a cidade de Corumbá (MS) e o Porto da Manga, no Rio Paraguai, uma das portas de entrada do Pantanal sulmatogrossense. Depois cresce (aplicando o estilo inocenciano de Taunay) na descrição de “Cenários” (onde fala do Rio Taquari e da planície), recua no esboço de “O Personagem” e de novo cresce (graças a Taunay) na “Pequena História Natural”, onde trata de urubus, socós, quero-queros e outros bichos.

Faltou no livro uns 20 desenhos feitos por mangakas japoneses…

Abaixo, alguns excertos:

Em “Cenários”:

Definitivo, cabal, nunca há de ser este Rio Taquari. Cheio de furos pelos lados, torneiral ‒ ele derrama e destramela à toa. Só com uma tromba d’água se engravida. E empacha. Estoura. Arromba. Carrega barrancos. Cria bocas enormes. Vaza por elas. Cava e recava novos leitos. E destampa adoidado…

Nem folha se move de árvore. Nenhum vento. Nessa hora até anta quer sombrear. Peru derrubou a crista. Ruminam algumas reses, deitadas na aba do mato. Cachorro produziu chão fresco na beira do rancho e deitou-se. Arichiguana foi dormir na serra. Rãs se ajuntam detrás do pote. Galinhas abrem o bico. Frango d’água vai sestear no sarã. (…)

O mundo foi renovado, durante a noite, com as chuvas. Sai garoto pelo piquete com olho de descobrir. Choveu tanto que há ruas de água. Sem placas sem nome sem esquinas. Incrível a alegria do capim. E a bagunça dos periquitos! Há um referver de insetos por baixo da casca úmida das mangueiras. Alegria de manhã é ter chovido de noite! (…)

Em “O Personagem”:

Enquanto as águas não descem e as estradas não se mostram, Bernardo trabalha pela boia. Claro que resmunda. Está com raiva de quem inventou a enxada. E vai assustando o mato como feiticeiro. Os hippies o imitam por todo o mundo. Não faz entretanto brasão de se pioneirismo. Isso de entortar pente no cabelo intratável ele pratica de velho. A adesão pura à natureza e a inocência nasceram com ele. Sabe plantas e peixes mais que os santos.

Em “Pequena História Natural”:

Cachorro espicha o olho tímido. E súbito pula sobre a ave. Biguá mergulha e aparece do outro lado. Cachorro se desgoverna. Biguá mergulha de novo. Aparece mais longe. Dá adeusinho. Cachorro volta sem graça, rabo entre as pernas.

.

Obra: O Guardador de Águas ( 1989 )

Pequeno progresso. O poeta, ao invés de simplesmente lançar ao editor as suas anotações, na ordem e no estado em que vieram ao mundo, agora eventualmente rejunta os versos solteiros por assunto ou personagem, concertando um simulacro de discurso poético. Assim, ao invés de citar o lodoso estilo do sapo num primeiro verso, a raiz do caracol no outro e a musicalidade do ermo no terceiro, Manoel de Barros diversifica a tortura do leitor  acenando com uma unidade conceitual, como no exemplo abaixo:

Esse é Bernardo. Bernardo da Mata. Apresento.

Ele faz encurtamento de águas.

Apanha um pouco de rio com as mãos e espreme nos vidros

Até que as águas se ajoelhem

Do tamanho de uma lagarta nos vidros.

No falar com as águas rãs o exercitam.

Tentou encolher o horizonte No olho de um inseto ‒  e obteve!

Prende o silêncio com fivela. Até os caranguejos querem ele para chão. (…)

E faz prosa disfarçada de poema envergonhado:

Suporte de uma tapera é o abandono.

Aqui passeiam emas distraídas, com as suas moelas de

alicate, a comer suspensórios, cobras, pregos, maçarocas

de cabelo, cacos de vidro, etc.

A ema esmera mais com vidros.

E não são feitas para ela as hirtas coxas das lagartixas?

Tapera tem as horas paradas.

É um território de aturdidos morcegos.

Baratas passeiam por seus luares…

Tapera é a coisa mais nua!

Tem perfeições de apagamento esse lugar.

Descem por seus escâncaros rubros melões-de-são-caetano.

Tapera só aguenta o esquecimento.

Teius de amígdalas gordas dormem nas cinzas do fogão.

Cipós e teias amarram esse abandono.

E perpetra, sem indicar o sujeito :

Em suas ruínas

Homizia sapos

Formigas carregam suas latas

Devaneiam palavras

E volta ao antigo hábito fragmentário:

Gravata de urubu não tem cor.

Fincando na sombra um prego ermo, ele nasce.

Luar em cima de casa exorta cachorro.

E acaba explicando o que o leitor aplicado já intuiu há muito tempo:

Poeta [ MB fala por si ] é um ente que lambe as palavras e depois se alucina.

.

Obra: Concerto a Céu Aberto para Solos de Ave ( 1991 )

Obra: O Livro das Ignorãças ( 1993 )

Nesses dois livros MB apresenta inéditos personagens: no primeiro um avô que dava em árvore (como um galho ou uma folha) e um andarilho; no outro, um certo Apuleio canoeiro. Todos deixaram manuscritos equivalentes, com um jeito de reduzir o mundo parecido com o de Manoel de Barros e de todos os personagens anteriores de Manoel de Barros. Todos surrealistas, desinstrutivos, desconstrutivos e desfugidios.

O Avô diz:

Contemplo as engrenagens de um monturo:

vísceras de colchões, caixotes, tripas de aves etc.

A tripa é insigne!

Seduz-me essa união rasteira das tripas com o musgo.

Seduz-me o trono dos insetos.

Aristeu, o andarilho, diz:

Mosca de estrume tem pestana alta (ou quase 32% delas).

Certas palavras delinquem como qualquer farmacêutico.

Bosta de carancho, na pedra, combure.

MB diz, em prosa envergonhada:

Aos blocos semânticos dar equilíbrio. Onde o

abstrato entre, amarre com arame. Ao lado de um

primal deixe um termo erudito. Aplique na aridez

intumescências. Encoste um cago ao sublime. E no

solene um pênis sujo.

Apuleio, o canoeiro, diz:

Eu sou meio estandarte pessoal.

Preciso do desperdício das palavras para conter-me.

O meu vazio é cheio de inerências.

Sou muito comum com pedras.

MB, o autor, diz:

Quando o rio está começando um peixe

Ele me coisa

Ele me rã

Ele me árvore.

MB diz, de Sombra-Boa:

Certa vez encontrou uma voz sem boca. Era uma voz pequena e azul. Não tinha boca mesmo. “Sonora voz de uma concha”, ele disse.

MB diz, num autorretrato falado:

Me criei no Pantanal de Corumbá, entre bichos do chão, pessoas humildes, aves, árvores e rios.

Me procurei a vida inteira e não me achei ‒ pelo que fui salvo.

Não fui para a sarjeta porque herdei uma fazenda de gado. Os bois me recriam.

Estou na categoria de sofrer do moral, porque só faço coisas inúteis.

Com tantas explicações, tudo fica mais claro; pelo menos quanto ao conteúdo da poética de Manoel de Barros… .

Obra: Livro Sobre Nada ( 1996 )

Obra: Retrato do Artista Quando Coisa ( 1998 )

Bugrinha se manifesta. Depois, Manoel de Barros continua se explicando, em prosa e verso, numa espécie de recall de poeta:

Bugrinha poetiza:

A mãe bateu no Mano Preto. Falou que eu não apanhava porque não dei motivo. Subi no pico do telhado para dar motivo. Aqui de cima do telhado a lua prateava. A mãe disse que aquilo não era motivo.

MB explica:

(…) O que ponho de cerebral nos meus escritos é apenas uma vigilância pra não cair na tentação de me achar menos tolo que os outros. Sou bem conceituado para parvo. Disso forneço certidão.

MB esclarece:

Sei que fazer o inconexo aclara as loucuras. Sou formado em desencontros. A sensatez me absurda. Os delírios verbais me terapeutam.

MB escatologiza:

O homem que deixou a vida por se sentir um esgoto ‒ Acho mais importante do que uma Usina Nuclear. Aliás, o cu de uma formiga é também muito mais importante do que uma Usina Nuclear.

MB justifica:

Venho de nobres que empobreceram. Restou-me por fortuna a soberbia. Com esta doença de grandezas: Hei de monumentar os insetos! Hei de monumentar as pobres coisas do chão mijadas de orvalho.

MB divaga:

Não saio de mim nem pra pescar.

Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas quando não desejo contar nada, faço poesia.

As palavras me escondem sem cuidado.

MB delira:

Dou meiguice aos urubus. Sapos desejam ser-me. Quero cristianizar as águas. Já enxergo o cheiro do sol.

Gosto [ mais ] de viajar de palavras do que de trem.

Um dia me chamaram primitivo: Eu tive um êxtase. Igual a quando chamaram Fellini de palhaço: E Fellini teve um êxtase.

MB teoriza:

Não é por fazimentos cerebrais que se chega ao milagre estético senão que por instinto linguístico.

MB chega mais perto da Verdade:

Sabedoria pode ser que seja ser mais estudado em gente do que em livros.

.

Obra: Ensaios Fotográficos ( 2000 )

Obra: Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo ( 2001 )

Obra: Poemas Rupestres ( 2004 )

Obra: Menino do Mato ( 2010 )

Nos quatro livros Manoel de Barros escreve sobre generalidades, faz meta-poesia e conta da vida infantil vivida em lugares ermos. Continua encompridando os versos (ou aproximando-se do escrever proseado) e a técnica da transmigração (de qualidades e ações entre os entes de seu universo poético) é relativamente pouco usada. Excertos do primeiro desses livros:

A gente crescia sem ter outra casa ao lado. No lugar só constavam pássaros, árvores, o rio e os seus peixes. Havia cavalos sem freios dentro dos matos cheios de borboletas nas costas. O resto era só distância.

Vi que as árvores são mais competentes em auroras do que os homens. Vi que as tardes são mais aproveitadas pelas garças do que pelos homens. Vi que as águas têm mais qualidade para a paz do que os homens. Vi que as andorinhas sabem mais das chuvas do que os cientistas.

No estágio de ser árvore meu irmão descobriu que as árvores são vaidosas. Que justamente aquela árvore na qual meu irmão se transformara, envaidecia-se quando era nomeada para o entardecer dos pássaros. E tinha ciúmes da brancura que os lírios deixavam nos brejos.

Excertos do segundo desses livros:

Não atinei até agora por que é preciso andar tão depressa. Até há quem tenha cisma com a lesma porque ela anda muito depressa. Eu tenho. A gente só chega ao fim quando o fim chega! Então pra que atropelar?

Ele sabia o sotaque das lesmas E tinha um modo de árvore pregado no olhar. O homem usava um dólmã de lã sujo de areia e cuspe de aves. Mas ele nem tô aí para os estercos. Era desorgulhoso.

Não tenho pensa. Tenho só árvores ventos passarinhos ‒ issos.

Hai-kai de Bernardo:

Passarinhos do mato

gostam de mim

e de goiaba.

Excerto do terceiro desses livros:

Desde sempre parece que ele fora preposto a pássaro.

Mas não tinha preparatórios de uma árvore

Pra merecer no seu corpo ternuras de gorjeios.

Ninguém de nós, na verdade, tinha força de fonte.

Ninguém era início de nada.

A gente pintava nas pedras a voz.

E o que dava santidade às nossas palavras era a canção do ver!

Trabalho nobre aliás mas sem explicação

Tal como costurar sem agulha e sem pano.

Na verdade na verdade

Os passarinhos que botavam primavera nas palavras.

Era um caranguejo muito se achante.

Ele se achava idôneo para flor.

Passava por nossa casa Sem nem olhar de lado.

Parece que estava montado num coche de princesa.

Ia bem devagar

Conforme o protocolo

A fim de receber aplausos.

Muito achante demais.

(…)

Mas o coche quebrou

E o caranguejo voltou a ser idôneo para mangue.

Excerto do quarto desses livros:

Lugar mais bonito de um passarinho ficar é a palavra. Nas minhas palavras ainda vivíamos meninos do mato, um tonto e mim. Eu vivia embaraçado nos meus escombros verbais. O menino caminhava incluso em passarinhos. E uma árvore progredia em ser Bernardo. Ali até santos davam flor nas pedras. (…)

Ele sabia que as coisas inúteis e os

homens inúteis

se guardam no abandono.

Os homens no seu próprio abandono.

E as coisas inúteis ficam para a poesia.

.

Obras: 4 livros infantis ( de 1999, 2001, 2003 e 2007 )

Os “livros infantis” de Manoel de Barros têm textos ao meu ver totalmente inadequados ao público menino. Falam de crianças e seres ligados ao mundo infantil, mas com um enfoque inequivocamente adulto. Qualquer criança jurará que entendeu tudo, mas estará delirando (no sentido barriano) a palavra “compreensão”. Eis 4 excertos, um para cada “livro”:

Com o tempo [ o menino ] descobriu que escrever seria o mesmo que carregar água na peneira.

No escrever o menino viu que era capaz de ser noviça, monge ou mendigo ao mesmo tempo.

O menino aprendeu a usar as palavras. Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.

E começou a fazer peraltagens.

Fazer pessoas no frasco não é fácil

Mas se eu estudar ciências eu faço.

Sendo que não é melhor do que fazer pessoas na cama

Nem na rede

Nem mesmo no jirau como os índios fazem.

O cachorro vira-lata

queria que queria entrar dentro de um inseto.

Mas a lata não deu inteira

dentro do inseto.

O rabo ficou de fora.

Disse que ainda hoje vira a nossa Tarde sentada sobre uma lata ao modo que um bentevi sentado na telha.

Logo entrou a Dona Lógica da Razão e bosteou: Mas lata não aguenta uma Tarde em cima dela, e ademais a lata não tem espaço para caber uma Tarde nela!

Isso é Língua de brincar

É coisa-nada.

C   O   N   C   L   U   S   Ã   O

Depois do terceiro livro Manoel de Barros decidiu restringir o cenário de seu universo poético ao rés-do-chão de sua primeira infância. Quanto aos protagonistas humanos, entretanto, ele se mostrou mais abrangente, colocando nesse cenário personagens de várias épocas e gerações. Todos reduzidos à obsessão barriana (ou do Eu-Lírico absorvido de um menino de tenros anos) pela integração física com a Natureza, que seria assimilável e desassimilável à vontade. O excerto abaixo é bem revelador, com a personagem “Menina Avoada” descrevendo uma sua manhã típica:

Manhã:

[ Era eu ] estar viajando pelo chão que a água é atrás, até ficar de árvores, com a boca pendurada para os passarinhos.

Isto corresponderia, numa linguagem adulta comum, a:

Manhã: Era eu estar me arrastando pelo chão, próximo ao córrego, desejando ser uma árvore para ter os passarinhos em meus braços [galhos e ramos], bem próximos da minha boca [e olhos, nariz, ouvidos], isto é, ao alcance do meu exame.

MB começa o quarto livro dando espaço a personagens infantis, pondo-lhes na língua expressões compatíveis, onde se nota (coisas muito comuns entre crianças) as elipses, os acréscimos indevidos, as trocas de verbos e pronomes e as onomatopéias.

Na outra metade desse livro, assim como em todos os outros livros poéticos para adultos que publicou, o poeta coloca no cenário citado, ou em porções dele transplantadas para ambiente urbano, personagens adultos, ou intervém ele mesmo, MB, como personagem. Nesses trabalhos ele utiliza uma linguagem cheia de metáforas, geralmente surrealistas (técnica que iniciara com o terceiro livro, lançado em 1956). São essas metáforas e principalmente esse surrealismo que causam parvo fascínio na maioria dos acadêmicos estudiosos da obra barriana.

Entretanto, tratar metáforas e atribuições surrealistas, muitas de grande abstração, como Linguagem Infantilizada, ou chamá-las de Criançamento das Palavras, ou ainda mimeticamente utilizar expressões ou neologismos equivalentes, são procedimentos eivados do mesmo equívoco de confundir surrealismo com linguagem de criança.

O boi de pau era tudo que a gente quisesse que sêsse é linguagem infantil ou infantilizada. Já os versos abaixo só podem ter origem na fala adulta, tendo sabor surrealista e sendo às vezes literalmente ininteligíveis:

O rio empernava as casas.

Saudade me urinava na perna.

Pierrô tem sua vareja íntima: é viciado em raiz de parede.

Pior ainda é confundir a supressão mecânica de componentes do discurso (às vezes nomes, às vezes objetos diretos, ou objetos indiretos, ou verbos – “Ele me rã, ele me árvore” -, ou advérbios, ou conjunções, ou preposições, ou dois ou mais componentes combinados) com Linguagem de Vanguarda.

Essa extrema economia de palavras já era praticada na época em que os seres humanos (ou sub-humanos) viviam nas cavernas, não por vanguardismo, mas por penúrias verbais: ainda não haviam sido inventadas as conjunções, as preposições e outros complementos, e as ações apenas esporadicamente eram entendidas como entidades autônomas em relação aos sujeitos que normalmente as praticavam (esta mesma confusão ocorria com as qualidades dos seres – milênios depois abstraídas em adjetivos – e esses seres em si – substantivos).

Isto seria a norma há cerca de cem mil anos, e custou muito para a Humanidade chegar aos Sócrates, Bacons e Shakespeares da vida. Num período ainda mais distante, os seres sub-humanos apenas balbuciavam gu-gus e da-dás. Se houver tempo, a “genialidade” do eu-lírico incorporado em Manoel de Barros ainda chega lá, para orgasmo do academicismo-para-inglês-ver e para diversão do próprio eu-lírico com a inacreditável inocência de tantos estudiosos.

Essa roda quadrada de suprimir conquistas da mente humana, portanto, não foi criada por MB, mas apenas resgatada das cavernosas trevas do longínquo passado.

Depois de ler sua “Poesia Completa” por três vezes, em minha mente só ficaram alguns fragmentos de cultura: um ou outro hai-kai involuntário, alguns poemas inteligíveis, a frase da menina sobre a manhã e a prosa (no estilo de Taunay) sobre o Pantanal.

A obra de Manoel de Barros não compõe um quadro (surrealista ou não) discernível, e nem mesmo um mosaico de cenas lembráveis. A parte mais aplaudida pelos estudos acadêmicos é uma miríade de versos e frases propositalmente distorcidos ou truncados, declarada e equivocadamente sonhando obter sentidos novos para as construções (ou desconstruções) resultantes. Na prática nem de longe o poeta alcança o seu objetivo, sobrando para o leitor estéreis  exercícios mentais (como imaginar o salto alto de um chapéu), muito chatos pelas fórmulas (duas ou três) repetidas até a exaustão.

Essa obra vale mais como experimentação literária, mostruário de propostas equivocadas. Em sua longa trajetória poética o autor foi useiro e vezeiro em “delirar” com as palavras. Mas esse pretenso delírio é claramente um mecânico Jogo de Desconjuntar, pouco sofisticado porém racional (no sentido de consciente, em contraposição a espontâneo ou inconsciente) . Daí a definição exposta no título deste artigo.

Campo Grande (MS), 30 de outubro de 2010.

Valdir Dala Marta

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MATÉRIAS CORRELATAS:

25/09/2012: Uma Carta Extraviada

28/07/2012: O Jovem Festival de Bonito e o Velho Poeta

21/10/2010: Fios que o Prendem à Infância

4 Respostas to “Manoel de Barros, o Delirante Racional”

  1. Núbia Vieira Says:

    Válida sua tentativa de “descrever” a obra de Manoel de Barros… Mas analisar e “entender” de fato o sentido literário e linguístico de sua importância, penso que não lhe foi possível. Mas tudo bem!
    __________
    Valdir diz:

    Núbia:

    Obrigado por manifestar a sua opinião. Fico feliz por supor que pelo menos uma pessoa (você), dentre as 2 mil que acessaram este artigo, o leu por completo (ou pelo menos boa parte dele). Nesse ponto, pelo menos, me igualo a Manoel de Barros, campeão em propiciar leituras que são começadas e interrompidas no quinto verso (ou quinta linha). Só os acadêmicos lêem MB por inteiro (ou mais do que 5 versos), por exigência profissional. Arnaldo Jabor teve náuseas; e mesmo um dos acadêmicos teve dó.

  2. Lárcio Urias Says:

    Valdir e Núbia – sempre nubente,
    Parafraseando o bom e velho Manoel Wenceslau, diria que entreveros dessa natureza já foram objeto do “Tratado geral das grandezas do ínfimo”.
    Falemos de estátua. … Nasceu para nada, pássaros faziam bosta em sua cabeça… isso é língua de brincar…

  3. Maria Lucia Melo Says:

    Gostei da análise. Nota-se que MB evoluiu na técnica de construir um texto original e muito bonito. Mesmo na singeleza é preciso lapidar. Ele conseguiu isso na arquitetura de sua obra. Parabéns, Valdir, pelo seu trabalho.
    __________
    Valdir diz:

    Maria Lucia:

    Obrigado pelo acesso, pelo comentário e pelo incentivo!

  4. Maria Marta Vidal Says:

    Muito bom ! MB é difícil ,porém gostoso . Com o estudo,
    o olhar fica profundo e a reeleitura fica mais rica .

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