O jovem Festival de Bonito e o Velho Poeta

13º Festival de Inverno de Bonito, famoso destino do ecoturismo brasileiro (para quem não sabe, Bonito fica no Estado de Mato Grosso do Sul, junto à Serra de Bodoquena).

Tudo começou no dia 25 de julho de 2012, às 19 horas, com a apresentação, em pequeno desfile, de fanfarra, grupos de balizas infantis e juvenis, e ainda seis pernas-de-pau. Logo depois ocorreu, no palco Fala Bonito, armado junto à Praça da Liberdade, a abertura oficial, com os tradicionais discursos e louvações, seguidos de show pirotécnico e o sair de cena da fanfarra e balizas. E finalmente a apresentação de Sérgio Reis e banda familiar.

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Ligação da Praça ao Circo

Esse espaço (“Fala Bonito”) onde se apresentou Sérgio Reis fica numa das ruas que limitam a Praça da Liberdade. Desse espaço até o circo levantado na Praça do Festival, a 300 metros dali, montou-se um longo cordão de instalações em homenagem ao poeta cuiabano Manoel de Barros: tendas com pufs ladeados por versos do poeta, grupos de bancos indutores de clima poético, tenda com origâmis e por fim um túnel cenográfico, com mais poemas do referido bardo.

Bom, essa “indução de clima poético” é suposição nossa acerca do intento dos idealizadores do cordão. De fato, como mostram as fotos abaixo, aparecem no espaço vários grupos de poltronas de madeira dispostas em U, ladeando mesinha e, nesta, cestinha abarrotada de poemas avulsos. Se estivéssemos num campus de Harvard, próximo ao curso de Literatura, e fosse apresentado de chofre aos interessadíssimos estudantes (como os que aparecem em filmes de Hollywood) um novo, desconhecido e genial poeta, presenciaríamos, em cada U, estupefações radiosas se levantando das cadeiras para ler, em voz alta, pérolas encantadas do tal poeta.  E depois de algum tempo o grupo todo, entusiasmado, se levantaria, planando sobre chão, poltronas e vasos de plantas, numa dança coreográfica digna dos melhores musicais da Broadway.

Pena que não estávamos num campus hollywood-harvardiano e que o poeta escolhido represente o já senil movimento “modernista”.  E pena que, com os modernistas, a poesia desse bardo seja hermética e fragmentária e, característica própria, cheia de embaralhamentos surrealistas (¹), frequentemente  confundidos com “nova linguagem” ou, pior, com “linguagem infantil”. Nessa comédia de erros,  as dissertações acadêmico-burocráticas (²), alguns outsiders da crítica literária (³) e finalmente os generosos gestores de verbas públicas, todos  juram que se trata de um gênio, construtor de uma obra poética de abissal profundidade (4). Na encenação orwelliana montada em Bonito, caberia ao distinto público ( isto é, a nosotros, mortais comuns ) acatar a opinião dessas “autoridades”  e prostrar-se diante de tão fundo Buraco Negro.

O blog procurou verificar se o distinto público cumpriu o papel que lhe foi atribuído pelos iluminados burocratas. E postou-se nas imediações do espaço indutor entre 19 e 23 horas do dia 25, e durante algumas horas frio-ensolaradas do dia 26, e ainda durante momentos esparsos do dia 27. O que presenciamos nos dias 26 e 27 não desmente o que vimos no dia 25 (os fatos narrados não são sequenciais nem concomitantes):

Grupo de Poltronas de Oeste: um senhor dos seus 50 anos retira um dos papéis do cestinho à sua frente e lê atentamente um poema.

Grupo Nordeste:  três pares de namorados tomam refrigerantes em copos descartáveis, apoiando garrafa na mesinha central do U.

Grupo Sudeste: um visitante aproxima-se, vindo dos origâmis, apontando a máquina fotográfica para um grupo de adolescentes de 14 a 18 anos. Um destes acendia um baseado de maconha. O visitante chega mais e os rapazes, percebendo a filmagem incidental, aplicam manobra diversionista: o do baseado se ergue de chofre e sai gesticulando, enquanto dois outros se levantam, um deles dando uma cinematográfica tragada num cigarro normal. O cinegrafista, percebendo que invadira privacidades, desvia a câmera, constatando que se trata de garotos bem vestidos, provavelmente de classe média.

Grupo Sul: um senhor de cabelos grisalhos, duas mulheres mais jovens e um rapaz degustam pastéis envoltos em apropriados sacos de papel.

Grupo Oeste (novamente): um grupo de jovens compartilha discreto narguilé.

Grupo Leste: mãe e três crianças descansam.

Grupo Nordeste (novamente): casal de namorados (ver frame acima), aparentemente brigados ou sem assunto. A moça estica o braço e pega displicentemente uma das folhas do cestinho.

Nas tendas com pufs aparecem alguns livros ricamente encadernados, com poucas palavras perdidas entre grandes fotos coloridas. Uma ou outra criança se aproxima do estranho objeto, folheia-o e se detém numa onça pintada ou num caracol. Em seguida parte para empresas menos entediantes.

Naquele intervalo de quatro horas o blog apenas flagrou, lendo poemas de Manoel de Barros (5), as duas pessoas referidas acima. Parece que o bardo só é popular  em Modernístia ( terra vizinha a Pasárgada ), onde é amigo do rei.

No túnel cenográfico, onde o eventual leitor nem precisava esticar o braço para acessar um poema, o resultado nos pareceu ainda mais pobre. O vídeo abaixo, feito à noite (às 20 hs 10 min), pode dar uma ideia. Se as palavras ali dispostas fossem as de uma lista telefônica, ou se se juntassem como numa sopa de letrinhas, produziriam igual reação.

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Outros Artistas no Festival

“Cidade”, de Claudio Tozzi, 1984, serigrafia sobre papel, 50 x 70 cm.

Figura em palha de milho. Artesã Doralice Horns, de Rio Negro (MS).

Áuboni, artista de rua, fazendo caricaturas.

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(1) E, como variante,  recursos de Dislexia. Nada contra, desde que o contexto do poema comporte a adoção desse truque. Mas um dos destrambelhos da poesia modernista é justamente a falta de explicitação do contexto, de forma que os poemas se tornam frases soltas no ar, somente compreensíveis para quem as escreveu. E se passar tempo suficiente e a memória embaçar, nem para ele.

Exemplo de imitação da dislexia é o poema legível no vídeo acima, que diz o seguinte:

Afundo um pouco o rio com meus sapatos.

Desperto um som de raízes com isso.

A altura do som é quase azul.

Percebe-se, inicialmente, que os três versos não parecem formar um contexto. Sem contexto, temos no primeiro verso a dislexia: pode-se imaginar, com algum esforço, que o cidadão (talvez uma criança) está numa canoa ancorada, tira um sapato e o mergulha parcialmente na água do rio. Para não-disléxicos, o sapato afunda na água do rio; para o disléxico trocapalavras, é o rio que afunda. Nenhuma genialidade; apenas imitação de uma disfunção neurológica. A cena imaginada daria um bom haicai, se o poeta quisesse contá-la em termos poéticos. E sem dislexia.

Mas há outras interpretações. Uma delas, desfazendo um provável truque surrealista de trocar um sujeito/objeto (terreno pantanoso) por outro (rio), cria um contexto englobando os três versos:

A criança está num terreno pantanoso, pisando sobre a turfa, que afunda um pouco nas pegadas. Embora turfa seja matéria vegetal morta, uma criança imaginaria que embaixo da superfície dela há raízes. O som produzido pelo pisoteio teria uma intensidade azul. Aqui, novo surrealismo (transferência da qualidade própria de um objeto para um evento – a formação de ondas sonoras – incompatível com tal qualidade), recurso  que nada acrescenta e nada explica; apenas disfarça a pobreza da linguagem, baratinando acadêmicos desprevenidos.

(2) A maioria baseada no falso pressuposto de que se trata de um poeta infantomágico, espécie de geminada antinomia ingênuo-sábio. Os mestrandos/doutorandos são encarregados de descobrir a chave para essa “genialidade”, e o pior é que todos a acabam “descobrindo”, cada um de um modo diferente, o que provaria a também genialidade desses acadêmicos, capazes de achar pelo em ovo!

No entanto, a técnica do bardo é uma fórmula (como notou Gerardo Mello Mourão), muito simples e  mecânica. Consiste em imaginar uma cena, trivial e sem carga emotiva, formulá-la mentalmente e depois substituir ou eliminar alguma(s) palavra(s) ou categoria gramatical, embaralhando o sentido (v. exemplo na nota anterior)  e simulando abordagem surrealista. O surrealismo em si funciona bem em Pintura, como mostram os trabalhos do paulista Luiz Xavier Lima, o  Luxavli; mas transposto,  com casca e tudo, para a arte poética, apenas provoca ojeriza entre os leitores comuns, pretensos destinatários dessa literatura estrambótica. O deslocado “surrealismo” de MB deveria estar em revistinhas de caça-palavras.

(3) Mas nem todos. Arnaldo Jabor, aparentemente por livre e espontânea pressão, escreve sobre um livro de Manoel de Barros, mas acha mais interessante uma lesma de seu jardim do que os escritos “surrealistas-minimalistas” do que ele, Jabor, denomina “poeta das insignificâncias e dos detritos”.

(4) Mas o poeta só trata do rés-do-chão. Parece reescrever continuamente uma história infeliz de criança às voltas com “os barros, os pequenos seres e os trastes” do abandono. Se é assim, MB criou (e então, palmas!) um ser lírico muito interessante; mas o desenvolveu de uma forma confusa e inepta.

(5) Ressaltamos que a nossa crítica vai para a obra do poeta e o uso equivocado de verbas públicas com o pretexto (inválido)  e a missão (impossível) de  popularizá-la. Nada contra a pessoa do bardo; pelo contrário, tudo a favor.  E a sua obra merece mais estudos sérios, fora do circuito babaovo.

Post Scriptum 30/07/2012:

No caderno especial do jornal O ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL, edição de hoje, Américo Calheiros, presidente da Fundação de Cultura de MS, afirma em artigo que “já em sua abertura um público de mais de dez mil pessoas fez coro ao consagrado repertório sertanejo de Sérgio Reis”. Bom, o simpático e competente homem público deve ter nascido em Itu, interior de São Paulo, para ter visto tanta gente assim nos logradouros públicos de Bonito. O blog avaliou o público presente no show do dia 25 em não mais do que 2.000 pessoas. Vídeos (inclusive os deste blog, que não pegaram bem o som e porisso não foram apresentados aqui) e fotos podem confirmar quem está com a razão. Apostamos R$ 1.000,00 em defesa do nosso número.

No mesmo artigo Calheiros fala de um público turista de 30.000 durante os cinco dias do festival. Bota exagero nisto! Nos três primeiros dias vimos pouca gente nas ruas e praças, e a estrutura hoteleira da cidade não comportaria uma compensatória invasão de turistas no fim de semana. Se é para chutar, o blog, incurável otimista,  chuta em 5.000 turistas.

Post Scriptum 25/09/2012:

Brincadeira das Musas do Olimpo, acabei recebendo uma carta, aberta, destinada ao referido poeta. Veja a postagem Uma Carta Extraviada.

2 Respostas to “O jovem Festival de Bonito e o Velho Poeta”

  1. Pimenta Says:

    Eu manifesto

    Meu caro Timblindim, eu manifesto:
    Ainda que o detestem, quem atesta
    ser ele mau artista que, de resto,
    seria simulacro que molesta?

    Mestrei-me em Manoel, pelo seu texto,
    contrário de alimária, vou à testa
    devido a meus estudos, sem cabresto,
    couberam-me certezas, desembesta

    de mim toda besteira. Pois, protesto,
    se dizes, o poeta, que não presta,
    acaso um poetastro, desonesto,
    fazendo bonitinho para a festa.

    De livros e doutores não me disto
    nem faço de Jesus um Anticristo.

    __________

    Valdir diz:

    Contraponto de poeta,
    ó Pimenta caro amigo;
    não sou contra tal postura,
    pois a Musa nega abrigo.

    Trinta teses li; não sei
    se a tua põe perigo
    à peneira que separa
    muito joio e pouco trigo.

    Não chamei de desonesto
    tal poeta, mas não ligo
    mui sentido à sua Lira,
    toda ela em seu umbigo.

    Unanimidade é castigo,
    mal pior que vitiligo.

    __________

    Observação: o Professor Henrique Pimenta gentilmente manifestou-se sobre o assunto a pedido deste blog. O objetivo da “resposta” nossa foi apenas argumentar para abrir novos diálogos.

  2. Pimenta Says:

    O Poeta

    Valdir, eu sou tão poeta
    quanto vossa senhoria.
    Manoel supera a meta,
    muito além da poesia,

    ele pinta, borda, esteta
    a brincar com anarquia,
    as ruínas que arquiteta
    lhe dispõem a monarquia.

    Esse Barros do capeta
    que prima pela avaria,
    em desvairada veneta
    fez da podridão a via

    que nos leva ao mais extremo:
    sentir no podre O Supremo.

    __________

    Valdir diz:

    1. Bondade do poeta Henrique Pimenta chamar-me de poeta. Na verdade sou apenas um versificador ocasional, com dois poemas cometidos apenas para fazer contraponto à falta de rimas em Manoel de Barros e ao primeiro comentário sonetado do próprio Pimenta.

    2. Os seis últimos versos do sonetilho acima, O Poeta, me parecem um tanto escatológicos. E não descrevem bem Manoel de Barros, literato que se apresenta, na sua obra, com um estranho franciscanismo. Em sua peculiar humildade, que convive com essa doença de grandezas, o bardo cuiabano almeja monumentar as coisas do chão mijadas de orvalho; mas nunca apresentou, para usufruto dos leitores, argumentos ou cenários em prol dessa ideia ou de outras semelhantes. Manifestou desejos, mas não procurou realizá-los. O que parece é que ele só se sente confortável quando resvala (apenas resvala) por temas impessoais e minúsculos (rãs, pedras, musgos, secreções) e tenta, numa recorrente metapoesia, vender a sua preferência como coisa respeitável dentro da Literatura. O que é perfeitamente válido, embora muito chato.

    3. Propus a alternativa de substituição, no sonetilho do Pimenta, dos últimos seis versos por estes:

    Esse Barros de gazeta,
    que prima pela avaria,
    em desvairada veneta
    faz da Musa a vera guia

    que nos leva pela alfombra
    a perseguir a nossa sombra.

    4. Conheço bem a obra barriana, pelo menos aquela publicada até o lançamento do livro Poesia Completa. E na fase modernista (a partir do quarto livro, Compêndio para Uso dos Pássaros), o que escapa dos truques parodo-surrealistas apresenta algum encanto. Um exemplo é o delicioso trecho abaixo, contado num improvável diário de Bugrinha:

    A mãe bateu no Mano Preto.

    Falou que eu não apanhava porque não dei motivo.

    Subi no pico do telhado para dar motivo.

    Aqui de cima do telhado a lua prateava.

    A mãe disse que aquilo não era motivo.

    Temos aí uma ambiguidade sutil, onde se deve imaginar que a mãe da menina deixou de puni-la, não por considerar banal uma subida ao telhado, mas sim, por considerar, poeticamente, que apreciar a Lua Cheia daquele lugar privilegiado neutralizava a infração cometida.

    Menos sutil (se contada oralmente), ou mais sutil (na versão escrita) é esta também deliciosa quadrinha de Mário Quintana, criada para agradecer a um amigo ajuda na Declaração de Renda:

    O meu cálculo é infiel

    Na mais inglória das lutas

    Lido com pena e papel

    E tu, ó Braga, computas.

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